domingo, 10 de julio de 2016

SOBRE A LEI ESCOLA SEM PARTIDO (MAS COM RELIGIÃO E CENSURA).

Na quarta-feira 6 de julho, um jornalista do Diário Catarinense, de Florianópolis, entrou em contato comigo para me perguntar pela minha disponibilidade para responder algumas questões sobre essa nova manifestação da barbárie que é a soi-disant ‘Lei Escola sem Partido’; que está sendo impulsionada pela mesma direita envolvida no golpe: sobretudo pelos grupos religiosos. Eu estava muito ocupado, e empolgado, escrevendo um artigo sobre o posicionamento de Ameghino frente a Haeckel, e não estava com vontade de me ocupar com este presente ridículo, rico em burradas e superstições; mas achei que manifestar minha opinião sobre esse triste assunto formava parte de minhas obrigações como professor universitário. Por isso, diligentemente, escrevi minha respostas. A matéria tinha que sair, como aconteceu de fato, no suplemento NÓS que este desluzido jornal de província publica na sua edição do final de semana. E foi isso que aconteceu.
Porem, nessa matéria, que era claramente a favor da lei reacionária, as opiniões dos que estávamos em contra de ela, foram praticamente desconsideradas. Elas citaram dois o três líneas daquilo que eu, e um par mais de pessoas contrarias a lei tinham dito; e o fizeram de um a forma totalmente descontextualizada, alheia ao contexto argumentativo no qual tínhamos dito o pouco que eles acharam oportuno citar. Na realidade, eles só fizeram citas que até podiam retificar os pseudo-argumentos daqueles que estavam a favor da lei. Foi, em resumo, uma experiência lamentável e uma perda de tempo, da qual só pode tirar-se esta moral: nunca mais coopere com a impressa reacionária, nem mesmo acreditando que, assim, eles vão a dar algum lugar a ideias contrárias às que eles propalam; porque de fato nunca farão isso. Você só estará cooperando com um simulacro de imparcialidade, tão hipócrita quanto, por exemplo, as críticas à corrupção que abundam em esse tipo de imprensa.

Vão ai, as respostas às perguntas que me foram formuladas:                   
  
- POR QUE A LEI ESCOLA SEM PARTIDO REPRESENTARIA UM RETROCESSO NA EDUCAÇÃO?
Porque na prática instauraria um sistema de controle ideológico sobre a atividade dos docentes. A partir dessa lei, será mais fácil perseguir a um docente por motivos políticos. Assim, para não ter problemas, a maior parte dos docentes vai deixar de falar sobre qualquer assunto polêmico. Ninguém vai querer discutir temas como a legalização da maconha no Uruguai; ou a legalização do aborto no Chile. A escola não vai poder promover os debates que a sociedade precisa enfrentar; e isso é uma renuncia a uma das suas funções mais importantes: formar cidadãos; e não só mão de obra um pouco mais qualificada. Uma sociedade não só precisa pessoas que possam ler o manual de uso de uma maquina nova: ela também precisa de pessoas que possam ler crítica e reflexivamente um jornal. E o pensamento crítico só se forma participando de discussões, devidamente colocadas e encaminhadas, sobre assuntos que realmente mereçam essas discussões; que são justamente os assuntos polêmicos que o pensamento conservador quer fora da sala de aula.       
É claro por outra parte, e é bom não se fazer distraído com isso, que o projeto almeja punir certo tipo de ideias. Não todas elas. O projeto fala em nome de uma neutralidade ideológica da escola; mas não é nada disso.  É só escutar o que falam aqueles que o promovem. Ideias que possam ser consideradas ‘de esquerda’, que promovam a respeito às escolhas sexuais, que questionem as formas tradicionais das relações entre gêneros, e outras coisas assim: essas são as tomas de partido que a lei quer evitar que apareçam em sala de aula. O que acontece é que a ideologia dominante sempre se vende a si própria como senso comum, como hipótese nula ou grau zero da ideologia; e, assim, tudo aquilo que se afaste dela, e questione esse conservadorismo, aparece como propaganda ideológica.       

- Como o senhor imagina que esse projeto seria posto em prática nas escolas? É possível um professor ministrar o seu conteúdo livremente tendo que se preocupar em não ferir as convicções políticas, ideológicas, morais religiosas etc de alunos com valores, vivências e backgrounds familiares diferentes entre si?
A lei não propõe uma forma de trabalho. Ela só estabelece uma ameaça virtual para quem possa vir a incomodar. Ela instaura a censura e vai redundar na autocensura. 
Os docentes perderiam totalmente sua liberdade. E não só os docentes: a escola perderia a autonomia que ela precisa para realizar sua tarefa. Com essa lei, os membros de qualquer comunidade religiosa vão a poder impedir que a teoria da evolução seja ensinada em sala de aula; porque ela, segundo muitos grupos religiosos falam, ofende a suas convicções. Mas, se isso é possível, qualquer coisa é possível: outro grupo mais radical poderá querer impedir que as noções do tempo geológico sejam tratadas em aula; porque isso contraria a temporalidade bíblica: aquela dos sete dias. E assim por diante: a capacidade crer não tem limite, e por isso tudo a pode ofender.
Mas há muito mais: o questionamento das relações entre gêneros, a ideia de que deve existir simetria de poder nessas relações, pode contrariar a forma em que muitas pessoas organizam e pensam sua vida familiar. A lei também pode impedir que esses assuntos sejam, então, tratados em sala de aula. Depois, é claro, vem a hora de escandalizar-se vendo ao Datena falar sobre um energúmeno que matou a mulher por ciúmes.
Há muitos temas que a sociedade precisa discutir, e cuja discussão a escola deve propiciar, e a lei da escola sem partido, quer evitar que isso aconteça. A lei da escola sem partido é a lei desse grande partido conservador que está articulando-se no Brasil.
Mais um: um grande instrumento para lutar em contra do abuso sexual contra crianças (que geralmente acontece dentro da proteção do lar), é uma educação sexual precoce e sincera. E VC já sabe que isso pode ofender a alguém, é claro.
Todavia, quando alguém fica ofendido também há que perguntar por que foi que se ofendeu. Se um docente promove um trabalho sobre as violações dos direitos humanos na época da ditadura; e alguém não gosta disso por achar que é propaganda comunista, então voltemos a de 1788! Claro, não é de espantar-se que, entre os que promovem esta lei, haja deputado que homenageiam a torturadores. Ou legitimem o estupro.          

- Caso o projeto seja aprovado, como os professores contrários à sua implantação podem reagir?
Eu apelaria para a corte interamericana de direitos humanos; e faria uma campanha internacional, usando as redes sociais. No mundo há uma sensibilidade crescente sobre as coisas que acontecem no Brasil ultimamente.

- Como está a receptividade às ideias do Liberdade para Educar? Quantas pessoas estão envolvidas?
Não sei. Não um ativista. Sou um professor de Filosofia, que gostaria de poder exercer a liberdade de cátedra.